Pessoa segurando celular na área Pix de aplicativo bancário
Bruno Peres/Agência Brasil
O sistema de pagamentos instantâneos da Índia, o Unified Payments Interface (UPI), é anterior ao Pix brasileiro, maior, tem mais funcionalidades e também foi desenvolvido a partir de uma iniciativa do governo.
Ele tem ficado, entretanto, fora do escrutínio dos Estados Unidos na força-tarefa montada em torno do tarifaço de Donald Trump, enquanto o Pix é alvo de uma investigação comercial aberta pelo governo americano em 15 de julho e ainda em andamento.
O Pix foi colocado na lista de supostas práticas “desleais” que vêm sendo analisadas pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês), que se refere a ele indiretamente no documento em que detalha a investigação como “serviço de pagamento eletrônico desenvolvido pelo governo”.
A medida ensejou comentários de figuras como o economista Paul Krugman, ganhador do prêmio Nobel, que elogiou o sistema brasileiro de pagamentos, e manifestações frequentes do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em defesa da plataforma.
A Índia chegou a ser penalizada na última semana pelos EUA com uma tarifa adicional de 25% — o que elevou a alíquota incidente sobre seus produtos ao mesmo patamar do Brasil, 50% —, mas o motivo foi a compra de petróleo da Rússia, país que é alvo de sanções americanas.
O UPI segue fora do radar do protecionismo da gestão Trump.
Nesse sentido, a BBC News Brasil conversou com especialistas em meios de pagamento e um analista de relações internacionais para entender as semelhanças e diferenças entre o modelo indiano e o brasileiro, comparação que pode lançar luz sobre as razões que levaram o governo americano a colocar o Pix em sua linha de tiro.
A origem do UPI
O Unified Payments Interface (UPI) surgiu em 2016, quatro anos antes do Pix existir no Brasil, com características parecidas: um sistema de pagamentos instantâneo, usado tanto para transferir recursos de pessoa para pessoa quanto para realizar compras, que funcionava 24 horas por dia, de forma gratuita e sem a necessidade do uso de dados bancários como número da conta e agência.
Ele foi parte de uma iniciativa em larga escala do governo indiano para promover a digitalização no país. Batizada de India Stack, o projeto incluiu o lançamento de um RG digital e até a desmonetização de boa parte das cédulas que circulavam no país, para desincentivar o uso de dinheiro físico.
O UPI foi desenvolvido por um consórcio de entidades financeiras (National Payments Corporation of India, NPCI) reunido por iniciativa do Banco Central da Índia.
Juntos, eles montaram a infraestrutura por trás da plataforma, que se tornou o principal meio de pagamento no país, respondendo hoje por 83% das transações digitais.
O dado é de um relatório divulgado em janeiro pelo Banco Central, que ressalta que o UPI “impulsionou a Índia à vanguarda no fornecimento de soluções de pagamento digital como um ‘bem público'”, abordagem que teria “potencial para ser replicada em outros países”.
Hoje cerca 500 milhões de indianos usam o serviço, conforme os números divulgados em julho pelo governo, e o sistema processa mais de 18 bilhões de transações por mês.
Pagamento offline e comando de voz
Também por ter sido lançado primeiro, o UPI apresentou uma série de soluções que, com o tempo, foram sendo incorporadas pelo Pix.
A modalidade que permite que pagamentos recorrentes sejam feitos de forma automática, por exemplo. Recém-lançada no Brasil como Pix automático, ela existe no UPI desde 2020, observa Sulivan Rocha, especialista em meios de pagamentos que já trabalhou como consultor na área.
E há ferramentas que ainda não apareceram aqui no Brasil, como a possibilidade de realizar pagamentos offline (muito útil na Índia, por exemplo, para usuários de zonas rurais afastadas, onde o serviço de internet pode ser ruim) e por comando de voz.
Expansão internacional
Outra frente em que o UPI avançou primeiro foi na expansão internacional. Hoje, a plataforma pode ser acessada em locais como Butão, Nepal, Cingapura, Emirados Árabes Unidos, Sri Lanka e França, resultado de acordos diretos da Índia com cada um desses países.
“Eles sempre foram muito vocais nisso, de que queriam criar um sistema internacional que fosse uma alternativa ao Swift”, diz Rocha. O Swift é hoje uma das principais ferramentas usadas para a realização de transações financeiras internacionais, operado por uma cooperativa com cerca de 11.500 instituições financeiras.
A próxima fronteira de crescimento, segundo um relatório recente do Ministério das Finanças da Índia, seriam os países dos Brics, para os quais o primeiro-ministro Narendra Modi tem divulgado o UPI.
A plataforma foi, aliás, um dos assuntos discutidos entre ele e o presidente Lula em uma longa ligação na última quinta-feira (7/8), segundo comunicado do Planalto.
Outro produto que também tem se espalhado em outros países é o cartão de crédito desenvolvido pelo mesmo consórcio que lançou o UPI.
Batizado de RuPay (“ru” vem de “rúpia”, a moeda indiana), ele concorre diretamente com bandeiras americanas como Visa e MasterCard e acabou de ser integrado com o UPI (uma solução semelhante ao Pix no crédito).
Rocha lembra que o Banco Central brasileiro já mencionou a possibilidade de internacionalização do Pix, mas que essa fronteira ainda não foi rompida de forma “oficial”.
O sistema passou a funcionar em outros países recentemente — Argentina e Paraguai, por exemplo —, mas como uma solução desenvolvida pelo setor privado.
Fintechs brasileiras como a PagBrasil desenvolveram ferramentas que permitem a lojistas em alguns locais fora do Brasil processarem pagamentos de consumidores brasileiros por meio do Pix. A operação de câmbio é feita na hora (com o valor, por exemplo, em pesos argentinos convertidos para real) e já com a cobrança do IOF.
“Não é uma solução oficial, foi desenvolvida pelo mercado”, ressalta Rocha.
‘Efeito pix’ e inovação à brasileira
Em um artigo recente, a pesquisadora Polina Kempinsky listou o histórico e as características do Pix e do UPI e fez uma comparação dos dois sistemas.
No Brasil, a forma como o Pix foi estruturado (leia mais abaixo) beneficiou empresas nacionais, especialmente bancos digitais e fintechs. “Alavancando o modelo do Pix”, elas desenvolveram inovação e cresceram, expandindo-se inclusive para outros mercados.
Isso acabou fazendo do país uma referência internacional. O sistema de pagamentos instantâneos que a Colômbia se prepara para lançar (Bre-B), por exemplo, é inspirado no Pix e foi desenvolvido em parceria com uma empresa brasileira, a Dock.
“O Brasil é bem conhecido hoje por seus ‘neobancos’ [bancos digitais] e pelo seu ecossistema doméstico de inovação financeira”, diz ela à BBC News Brasil.
O Nobel Paul Krugman elogiou o Pix por ser quase instantâneo e por ter custos de transação baixos e sugeriu que o Brasil pode ter inventado o futuro do dinheiro com esse sistema.
“Outras nações podem aprender com o sucesso do Brasil no desenvolvimento de um sistema de pagamento digital”, escreveu Krugman.
O papel do Banco Central
Apesar de Pix e UPI terem sido criados a partir de iniciativas do governo, o desenho e a execução dos projetos foram bem diferentes.
No Brasil, o modelo foi desenvolvido completamente dentro da estrutura do Banco Central. A autoridade monetária chegou a colher contribuições de bancos e fintechs em consultas públicas e por meio do “fórum Pix”, mas manteve maior controle sobre o processo e implementação da plataforma.
Uma evidência nesse sentido foi a obrigatoriedade de adesão a todas as instituições financeiras com mais de 500 mil contas transacionais, algo que não aconteceu no caso do UPI na Índia, onde a participação foi voluntária.
Essa diferença talvez explique por que o modelo brasileiro foi o que teve adoção mais rápida no mundo, chegando a quase 74% da população no terceiro ano de existência. Em 2024, ressalta Kempinsky, o UPI tinha atingido 350 milhões de usuários, o que era relevante em números absolutos, mas correspondia a 25% da população indiana.
“Na Índia foi muito mais uma parceria público-privada supervisionada pelo Banco Central da Índia com a Associação de Bancos da Índia”, pontua Rocha.
Nesse modelo, o BC da Índia atua principalmente como regulador, deixando o papel de operador para o setor privado.
Big techs: ganhadoras com UPI e perdedoras com Pix
Essa característica acabou favorecendo grandes empresas americanas, que hoje são protagonistas na última etapa da cadeia do UPI, a do consumidor final.
Enquanto o Pix funciona dentro do aplicativo de cada instituição financeira ou empresa de pagamentos, o UPI é processado por terceiros.
“Os bancos são os provedores de conta, porém não é no aplicativo do banco que você entra para fazer a transação. Você usa uma carteira digital”, explica Rocha.
E duas empresas americanas, Google e Walmart, respondem por mais de 80% das transações com o UPI, com Google Pay e PhonePe.
Essa característica marca outra grande diferença entre os dois modelos. Em seu artigo, apresentado durante o mestrado em políticas públicas na Universidade de Harvard, Kempinsky coloca as big techs como grandes “perdedoras” do Pix.
Ela menciona o caso do WhatsApp, que chegou a lançar a função de transferências e pagamentos no Brasil em 2020, mas teve de suspendê-la por ordem do Banco Central, que argumentou necessidade de analisar potenciais riscos à concorrência no setor de pagamentos. O Pix foi lançado cerca de seis meses depois.
“Essa abordagem faz parte de uma política geral para fortalecer o ecossistema doméstico em detrimento da participação de multinacionais”, ela ressalta no texto.
No caso da Índia, o papel cada vez maior de multinacionais tem gerado preocupação em relação a temas como privacidade de dados e concentração de mercado, a ponto de o governo considerar impor um limite de 30% de participação para os provedores de aplicativos.
Pix na mira de Trump
O governo americano anunciou em meados de julho uma investigação comercial contra o Brasil.
No documento divulgado pelo USTR, o órgão faz uma menção indireta ao Pix como um dos motivos. Segundo o relatório, um sistema “desenvolvido pelo governo” poderia estar prejudicando empresas americanas que atuam no setor de pagamentos.
“O Brasil também parece envolver-se em uma série de práticas desleais em relação aos serviços de pagamento eletrônico, incluindo, mas não se limitando a promover seu serviço de pagamento eletrônico desenvolvido pelo governo”, diz um trecho do documento que não elenca a quais práticas supostamente ilegais ele se refere.
Na avaliação de Thiago Aragão, diretor de estratégia da consultoria Arko Advice, grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos provavelmente observam com interesse os desdobramentos da investigação comercial que o governo americano abriu contra o Brasil, não só em relação ao Pix.
“O Brasil é um mercado altamente estratégico para essas empresas”, ele destaca, emendando que ele é um dos países do mundo que mais usa WhatsApp, que mais acessa o Google e consome Netflix.
“E isso cria um receio num mundo que ainda está buscando formas de regular as big techs”, completa.
No caso do Pix, Aragão chama atenção para empresas como o WhatsApp, que pertence à Meta, dona também do Facebook.
O Brasil é um dos três principais mercados para a plataforma, e no entanto o segmento de pagamentos está, de certa forma, fechado para ela — já que os brasileiros dificilmente trocariam o Pix pelo sistema de pagamentos do aplicativo, que foi liberado em 2023.
“Eu acredito que a questão do WhatsApp tem mais a ver do que os cartões de crédito”, opina Aragão, referindo-se às discussões que aconteceram após o anúncio da abertura da investigação comercial pelo USTR apontando Visa e Mastercard como grandes adversárias do Pix.
Em seu artigo, Kempinsky pondera que os dados sobre transações com cartão de crédito mostram um quadro mais complexo sobre o impacto dos sistemas de pagamento instantâneo.
A inclusão financeira promovida pelo Pix e pelo UPI permitiram que os bancos ganhassem novos clientes e tivessem, com isso, um novo público para oferecer cartões.
Depois do lançamento do Pix, a taxa de crescimento anual composta (medida usada no setor, identificada pela sigla CAGR) quase triplicou, atingindo 31,7% entre 2020 e 2022. Segundo ela, movimento semelhante aconteceu na Índia com o UPI.
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