Chico Chico lança o terceiro álbum solo de estúdio, ‘Let it burn / Deixa arder’, com 20 faixas que transitam entre blues, folk e gospel
Zabenzi / Divulgação
♫ OPINIÃO SOBRE DISCO
Título: Let it burn / Deixa arder
Artista: Chico Chico
Cotação: ★ ★ ★ ★ 1/2
♬ Terceiro álbum solo gravado em estúdio por Chico Chico, no mundo desde 24 de outubro com capa assinada por Christian Proença, Let it burn / Deixa arder é álbum longo para os padrões da era digital. São 20 faixas nas quais o cantor e compositor carioca transita pela canção de atmosfera folk, pelo blues e até pelo gospel, entre eventuais temas de sotaque mais brasileiro, com surpreendente unidade.
Quando se aproxima do fim, talvez pela longa duração, o disco começa a dar leves sinais de cansaço e repetição, mas essa sensação não chega a comprometer a excelência do conjunto da obra.
Álbum bilíngue, porém cantado mais em português do que em inglês, Let it burn / Deixa arder é o melhor trabalho da discografia de Chico Chico. Um álbum que atesta definitivamente a vocação e a evolução musicais do filho de Cássia Eller (1962 – 2001), desfazendo confusões em torno da obra fonográfica do cantor.
Sim, a discografia de Chico Chico sempre resultou confusa, dispersa, povoada por títulos colaborativos que empanaram a identidade do artista. Let it burn / Deixa arder põe Chico Chico no devido lugar, com safra autoral bem mais coesa do que os cancioneiros reunidos pelo artistas nos álbuns antecessores Pomares (2021) e Estopim (2024), discos bons, mas não o suficiente para firmar de vez o nome de Chico como faz o álbum atual.
Parte expressiva desse êxito deve-se ao azeitamento da parceria do artista com Pedro Fonseca, tecladista e arranjador que assina sozinho a produção musical de Let it burn / Deixa arder (no álbum anterior Estopim, Fonseca dividiu a produção com Rafael Ramos). Pedro Fonseca parece entender a alma musical de Chico Chico, como evidenciam os excelentes arranjos, e a traduz com precisão para o disco.
Como o cantor também mostra evolução vocal (talvez por ter se livrado do vício em álcool), o resultado é disco coeso que flagra Francisco Ribeiro Eller na ardência existencial de 32 anos, parte deles vivido às voltas com comparações com Cássia Eller, já que o DNA materno está impresso na voz de Chico.
Contudo, até nesse quesito, Let it burn / Deixa arder contribui para delinear a identidade do cantor ao terminar de cortar o cordão umbilical que ligava Chico a Cássia de forma natural, ainda que Cássia estará para sempre entranhada em Chico.
“Não mudo, só não sou mais aquele / Estou novo, e as canções se repetem”, dá a pista em versos de Farsa, canção autoral de aura folk ouvida na segunda faixa, após Tanto pra dizer, apaixonada música de Chico com Sal Pessoa apresentada em 15 de agosto como primeiro single do álbum.
Na sequência, Não carece é faixa quase vinheta de um minuto que ecoa a prosódia dos vanguardistas paulistanos da década de 1980. E vem então a certeza de que Chico Chico encontrou um rumo em Let it burn / Deixa arder com o fox-blues Tempo de louças, primeiro grande momento do álbum, inclusive pelo exuberante arranjo cheio de soul, cordas, metais e romantismo.
Two mother’s blues é, como o título já indica, blues em inglês. O formato acústico favorece o sentimento do gênero, evocado também pelo toque da gaita de Milton Guedes. Esse sentimento também paira na canção Zero jogo.
Primeiro faixa do lado B do disco 1 da provável edição de Let it burn / Deixa arder no formato físico de LP duplo, Lugarzinho desloca o álbum para as fronteiras do Sul do Brasil na forma de de milonga valorizada pelo toque do bandoneon do músico argentino Richard Scofano. Na sequência, Hora H quebra a estética do frio com a quentura do balanço brasileiro soprado pelo arranjo do trombonista Marlon Sette.
Ainda dentro do território nacional, Parabelo da existência (Chico Chico, Helber Quiroga e Oscar Vasconcellos) junta Chico com a nova baiana Josyara em gravação calcada na aridez do sertão nordestino, o que sintoniza a faixa com a reverente abordagem de Vila do sossego (1978), standard do cancioneiro do paraibano Zé Ramalho. A nação musical nordestina ainda reverbera no pife soprado por Carlos Malta na faixa Na minha idade, composição de Sal Pessoa cantada por Chico com Ivo Vargas.
Recorrente ao longo do disco, o espírito da canção folk baixa novamente em Heal me. Como o disco gravita em torno da música norte-americana da década de 1960 e 1970, a regravação de Four and twenty (Stephen Stills, 1970) – música lançada pelo quarteto norte-americano Crosby, Stills, Nash & Young há 55 anos no álbum Déjà vu (1970) – se ajusta com perfeição ao mood do álbum de Chico. Assim como a interpretação de Girl from the north country (1963), música da inicial fase folk da Bob Dylan cantada por Chico com propriedade.
Se o coro gospel de Acaso inevitável (Chico Chico e Sal Pessoa) eleva a faixa aos céus pela força das vozes de Janeh Magalhães, Fael Magalhães, Cleyde Jane e Rômulo Nascimento, o acalanto espacial Canção de ninar traz o canto adicional de João Mantuano, parceiro e convidado de Chico na música.
Já A felicidade (Chico Chico e Sula Turner) se desenvolve em clima progressivamente viajante, Reason to moan (Chico Chico, Kadu Mota e André Pereira) e Rita e Luísa deixam no ar sensação de cansaço e excesso. Até que a bilíngue faixa final Let it burn arrebata novamente o ouvinte com um boogie meio espirituoso, quase lúdico, em que Chico Chico avisa que fecha ciclo com disposição para arder futuramente em outras fogueiras das paixões.
Enfim, Let it burn / Deixa arder é grande disco – em todos os sentidos – que abre portas para Chico Chico.
Capa do álbum ‘Let ir burn / Deixa arder’, de Chico Chico
Arte de Christian Proença


