Ezequiel Neves (1935 – 2010) é o personagem do documentário ‘Ninguém pode provar nada’
Divulgação / Festival do Rio
♫ OPINIÃO SOBRE DOCUMENTÁRIO MUSICAL
Título: Ninguém pode provar nada – A inacreditável história de Ezequiel Neves
Direção: Rodrigo Pinto
Roteiro: Rodrigo Pinto e Kika Serra
Cotação: ★ ★ ★ ★
♬ José Ezequiel Moreira Neves (29 de novembro de 1935 – 7 de julho de 2010) nunca poupou ninguém, assim como o pop que ele caracterizava como “um guardanapo de papel sem a obrigação de ser perene”.
Umas das atrações da 27ª edição do Festival do Rio, com sessões programadas para 5, 6 e 7 de outubro, o documentário Ninguém pode provar nada – A inacreditável história de Ezequiel Neves (Giros Filmes e Ton Ton Filmes) se alimenta da franqueza e do veneno corrosivos desse fabuloso personagem para perfilar o ator, jornalista e produtor musical mineiro que passou para a história como amigo, produtor e espécie de “mentor” de Cazuza (1958 – 1990) por ter detectado a força inventiva dos versos do cantor e compositor carioca, projetado em 1982 como vocalista da banda Barão Vermelho.
Diretor do documentário que roteirizou com Kika Serra com mix de realidade e ficção na qual o ator Emílio de Mello personifica Ezequiel, o cineasta Rodrigo Pinto tampouco poupa Zeca Jagger (pseudônimo surgido da devoção ao grupo Rolling Stones) ao longo dos 105 minutos da narrativa.
Há, sim, exaltação da personalidade singular, da figura lendária e da efervescência criativa desse artista multimídia pelo depoentes do doc. Mas o diretor se esquiva dos elogios rasos, superlativos e nem sempre sinceros – típicos desse gênero de filme – em favor de um retrato o mais crível possível do incrível Ezequiel Neves.
Mãe de Cazuza, Lucinha Araújo lembra que Ezequiel alimentava os demônios do cantor, de quem foi parceiro em músicas como Não amo ninguém (1984) – cujos versos foram escritos por Cazuza a partir de tentativa de Ezequiel de escrever letra classificada pelo pupilo como horrorosa – e Exagerado (1985). Ezequiel personificou o próprio exagero.
Toda a treta com Rita Lee (1947 – 2023) ao longo dos anos 1970 e 1980 – atacada por Zeca na época dos Mutantes, glorificada na fase Tutti Frutti e novamente hostilizada por ciúme quando Roberto de Carvalho virou o par perfeito de Rita – vem à tona na tela, com a omissão de que foi Ezequiel quem espalhou o boato de que a roqueira estaria com leucemia por volta de 1984, ano difícil para Rita. “Não, Titia, eu não tô com leucemia”, rebateu Rita no verso-refrão do rock Não titia (1985).
Na parte inicial, o documentário surpreende ao detalhar o passado de Ezequiel Neves como escritor e sobretudo como ator na cena cultural de Belo Horizonte (MG) nos anos 1950 e 1960. O teatro foi a válvula de escape para um artista que já se descobrira gay e que vivia triste horizonte na cidade natal, inclusive pela asfixia familiar. “Nosso pai vivia em outro planeta”, dá a pista Wanda Neves, uma das duas irmãs de Ezequiel entrevistadas pelo diretor Rodrigo Pinto para o filme.
O teatro foi também o passaporte para a ida para São Paulo (SP) em 1965, onde o ator trabalhou com atores e grupos renomados. Mas eis que o rock entrou na vida e na veia de Ezequiel Neves, mudando o curso da história desde que ele foi para Nova York (EUA) uma semana após o mítico festival Woodstock. Tanto que, na volta ao Brasil, o ator saiu de cena para dar lugar a um jornalista e crítico musical de imaginação fértil em veículos da imprensa oficial (como o Jornal da Tarde) e alternativa (como o Jornal da Música).
Como ator, jornalista ou produtor, Ezequiel Neves sempre foi um personagem de tons ácidos, mordazes e surreais, capaz de dizer em alto e bom som, como visto no filme, que a música feita por Caetano Veloso para Cauby Peixoto (1931 – 2016) era “horrorosa”.
Na era pré-digital, Zeca ajudou a popularizar no Brasil nomes Janis Joplin (1943 – 1970) e Jim Morrison (1943 – 1971) com a mesma volúpia com que foi capaz de inventar entrevista com Keith Richards e descrever, faixa por faixa, um álbum solo do guitarrista Rolling Stones que nunca existiu. Não era jornalismo, claro, mas a jornalista Ana Maria Bahiana ressalva no filme, com discernimento, que essa escrita alucinógena de Ezequiel não destilava o veneno das fake news do século XXI.
Fazendo uso assumido de inteligência artificial para criar vozes e cenas, o documentário Ninguém pode provar nada – A inacreditável história de Ezequiel Neves se engrandece pelo fato de o diretor Rodrigo Pinto ter entendido estar diante de um personagem aliciante. E por enfatizá-lo como tal.
O José Ezequiel Moreira Neves da vida real, fora dos bastidores, não é o motor do filme. Até porque somente o próprio Ezequiel, morto há 15 anos em decorrência de enfisema e câncer no pulmão, exatos 20 anos após Cazuza, podia pôr em cena dores, inseguranças e medos que certamente existiram por trás da “louca alegria que era quase agonia, quase profissão”.
Cartaz de ‘Ninguém pode provar nada – A inacreditável história de Ezequiel Neves’, documentário de Rodrigo Pinto
Divulgação / Festival do Rio
A franqueza e o veneno corrosivos de Ezequiel Neves alimentam filme sobre o lendário produtor e jornalista musical
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