Atroz oficial nazista morreu no Brasil em 1979, com documentos falsos; sua identidade verdadeira só foi descoberta em junho de 1985. Anos mais tarde seus restos mortais viraram objeto de estudo. Josef Mengele foi apelidado de “anjo da morte” por sua atuação no campo de extermínio de Auschwitz
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Crueldades contra prisioneiros, sobretudo judeus, eram classificadas como “experimentos médicos” por Josef Mengele (1911-1979), apelidado de “anjo da morte” por sua atuação no campo de concentração de Auschwitz. Por um capricho da história, seu papel póstumo acabou sendo médico-científico: sua ossada, exumada há 40 anos em São Paulo, se tornou objeto de estudo na Universidade de São Paulo (USP).
Considerado desaparecido desde o fim do famigerado campo de concentração de Auschwitz, em janeiro de 1945, suspeitava-se que Mengele estivesse vivendo clandestinamente na América do Sul. Em fevereiro de 1985, ocorreu um simulacro de julgamento dele em Jerusalém, trazendo o nome do nazista criminoso de guerra novamente aos holofotes e suscitando um novo esforço internacional para descobrir seu paradeiro.
“Já se fazia quarenta anos de seu desaparecimento e não se sabia com certeza se ele estava vivo ou morto”, afirma a jornalista Betina Anton, autora do livro Baviera Tropical, que conta a história do médico nazista.
Mengele (no centro) em Auschwitz em 1944, ao lado de Richard Baer e Rudolf Höss
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No dia 31 de maio, autoridades alemãs realizaram uma operação de busca na casa de um amigo de infância de Mengele e encontraram uma carta que dava indícios de que ele teria morrido no Brasil em 1979. Ele então usava documentos em nome de Wolfgang Gerhard, identidade que havia assumido em 1971.
A Polícia Federal brasileira foi comunicada e, sob sigilo, o então responsável pela corporação em São Paulo, o delegado Romeu Tuma (1931-2010), determinou a exumação dos restos mortais suspeitos no feriado de Corpus Christi, em 6 de junho, no cemitério do Embu, na região metropolitana da capital paulista.
A notícia vazou para a imprensa e o sigilo foi comprometido. O caixão estava muito avariado, com as laterais praticamente decompostas. O então vice-diretor do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, o médico José Antônio de Melo, encarregou-se de retirar o material e encaminhar para análise na sede do órgão, no bairro de Pinheiros.
Logo após o almoço, o telefone da casa do médico Daniel Romero Muñoz tocou. Ele era professor na USP e chefe do setor de identificação do IML. Do outro lado da linha, Melo o convocava para ir imediatamente ao instituto.
Identificação antes dos exames de DNA
A bordo de seu fusca vermelho, Muñoz chegou ao IML meia hora mais tarde. Deparou-se com fragmentos, apenas. Segundo ele, havia a expectativa de que o caixão estivesse inteiro, “só que as laterais acabaram destruídas pelo tempo”. Isso fez com que a equipe fosse obrigada a “revirar os ossos e levar o que fosse possível”.
Muñoz conta que ainda naquele dia fez dois pedidos: que a polícia conseguisse, junto aos arquivos alemães, “dados fidedignos” sobre Mengele – um dossiê do exército nazista realizado em 1938 acabou sendo o documento fundamental para o processo; e que ele pudesse retornar ao cemitério de Embu para coletar mais material.
“Quando começamos a montar a ossada vimos que faltava dente, faltavam alguns ossinhos. Porque naquela baderna toda ele [Melo] pegou o que deu. Eu voltei ao cemitério, abri de novo a cova e trouxe o que restava do caixão, além de mais 16 sacos de terra para peneirar”, conta o médico. “Eu faço esse trabalho arqueológico o tempo todo.”
Coletiva de imprensa em 1985 que anunciou identificação da ossada de Mengele
Daniel Romero Muñoz / courtesy/DW
Segundo o médico, montar a ossada era a primeira tarefa. “Um quebra-cabeça um pouco mais complicado”, define. Ossos quebrados foram colados e, enfim, com esta fase concluída a análise pode finalmente começar.
Além dos cinco especialistas brasileiros que integraram o time, também fizeram parte dos trabalhos peritos americanos, do Centro Simon Wiesenthal, de Los Angeles, e especialistas ligados ao governo alemão. Muñoz explica que, em casos de identificação de corpos, seu método sempre parte do princípio de que é preciso duvidar de tudo.
“Eu parto do seguinte: ‘estão tentando me enganar’. Então procuro discordâncias. O que concorda vai aparecer naturalmente”, afirma.
No dia 13 de junho, em uma coletiva de imprensa, os indícios revelados já eram fortes para acreditar que a ossada era, sim, de Mengele. No dia 21, a revelação que se tornou definitiva e ecoou em todo o planeta.
“As coincidências encontradas entre o esqueleto exumado e as características de Josef Mengele indicam que é altamente provável que a ossada exumada no Embu seja de Josef Mengele”, declarou Muñoz, com a anuência dos peritos estrangeiros.
O médico lembra que foram testadas “mais de 50 características”, procurando sempre “discordâncias”. “E não encontramos nenhuma discordância”, conta. Sete anos mais tarde um exame de DNA comprovou que esse laudo estava correto.
Objeto de estudo
A ossada do monstro nazista seguiu guardada nos cofres do IML, conforme atesta Muñoz. A principal razão foi evitar um certo culto póstumo a ele. Mas ironicamente, de 2016 a 2021, os restos mortais de Mengele acabaram se tornando material didático para estudantes de medicina.
“Você notou quantas características importantes para a identificação? É um caso emblemático”, justifica-se ele. “Então, para mostrar isso, para médicos que estavam cursando especialização em medicina legal, mostrei essas coisas que são raras”, explica o médico, que se aposentou da USP em 2021 e atualmente é professor de medicina na Santa Casa, também São Paulo.
Ossos de Mengele viraram objeto de estudo na USP
Daniel Romero Muñoz/courtesy/DW
“Comecei a usar isso para a formação dos residentes e dos médicos que estavam fazendo cursos de especialização em medicina legal”, recorda. “Eles precisavam saber dessas coisas.”
“É uma ironia do destino ele virar um experimento científico. Isso nunca deve ter passado pela cabeça dele”, diz o historiador Pedro Burini, autor do livro O Anjo da Morte em Serra Negra. “Acho justo até. Mostra que ninguém está imune àquilo que faz para os outros. É, no mínimo, hilário.”
Burini acrescenta que acha positiva essa solução, porque “fazer um túmulo desse cara” seria acabar criando “um centro de peregrinação, infelizmente”. “Ainda bem que esses ossos não caíram em mãos erradas”, comenta.
Um monstro nazista no Brasil
Depois de fugir da Europa, Mengele foi primeiro para a Argentina, onde viveu sob a proteção de redes que ajudavam ex-nazistas a escapar de processos. No país, Mengele levou uma vida relativamente discreta e trabalhou em vários cargos, incluindo o de diretor administrativo de uma empresa que fabricava máquinas agrícolas.
Na década de 1960, com o aumento da pressão das autoridades – incluindo do Mossad – e o perigo de ser descoberto, Mengele mudou-se para o Paraguai. Lá ele recebeu a cidadania paraguaia, o que lhe ofereceu uma certa segurança. Naquela época, o Paraguai estava sob a ditadura de Alfredo Stroessner, um regime que não era hostil aos antigos nazistas. Mengele continuou a viver sob um nome falso e evitava aparecer em público.
Mengele se mudou para o Brasil em outubro de 1960. Segundo Anton, ele temia ser capturado pela agência de inteligência israelense Mossad e julgava que, no Brasil, seria mais fácil seguir clandestinamente.
No país ele viveu em São Paulo, em Nova Europa e em Serra Negra, sempre contando com o abrigo de famílias estrangeiras que o acobertavam – em algumas situações, inclusive desconhecendo que se tratava de Mengele. Morreu em Bertioga, no litoral paulista, em 7 de fevereiro de 1979, afogado após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC).
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‘Anjo da morte’: como ossada de médico nazista, descoberta há 40 anos, virou material didático no Brasil
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