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sábado, setembro 27, 2025
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Na Argentina, jornal e DVD contam mais que streaming na inflação; veja o que isso significa para Milei

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Entenda por que, na Argentina, jornal e DVD contam mais que streaming na inflação
Pense na rotina de um adulto nos anos 2000: acordar, tomar um bom café da manhã, folhear um jornal impresso e ir ao trabalho.
Depois de um dia exaustivo, a volta para casa é embalada pelas músicas preferidas no aparelho de MP3. No trajeto, uma parada na locadora do bairro para alugar um DVD — afinal, nada melhor que um bom filme depois do jantar.
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Antes de ligar a TV de tubo e apertar o play para assistir ao longa, surge a lembrança de um velho amigo. A forma mais prática de matar a saudade é abrir a agenda de papel e discar no telefone fixo, que está instalado no canto da sala.
Essa é a “fotografia” do consumo na Argentina, que ainda serve de base para o cálculo do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), indicador oficial da inflação no país. Isso porque o modelo atual, considerado defasado, tem como referência uma pesquisa antiga, feita entre 2004 e 2005.
Embora a cesta de produtos usada para calcular o aumento de preços na Argentina tenha tido ajustes em 2016, especialistas afirmam que a estrutura do índice não passa por uma reformulação completa, baseada nos novos hábitos de consumo, há quase duas décadas.
Assim, costumes antigos ainda influenciam bastante o cálculo do índice de preços no país, enquanto hábitos mais recentes — como a compra de iPhones, o uso de serviços de streaming e de aplicativos de mobilidade urbana — não são considerados.
“O descompasso é evidente. A última atualização do IPC foi realizada em dezembro de 2016, com base na pesquisa de gastos de 2004/05”, diz ao g1 Analía Calero, docente da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidad Católica Argentina (UCA).
🔎 O IPC, que mede a inflação, acompanha a variação de preços de uma cesta de bens e serviços representativa do consumo das famílias. Cada grupo tem peso diferente, refletindo sua importância no orçamento. Com o tempo, os hábitos de consumo mudam, então o índice precisa refletir essas variações para mostrar, em média, quanto os preços subiram em determinado período.
“O índice da Argentina ainda reflete um padrão de consumo de meados dos anos 2000, bastante defasado em relação ao atual. Pode-se dizer que, de certo modo, o IPC atual retrata um ‘consumidor vintage’, que aluga DVDs em vez de assistir à Netflix”, exemplifica Calero.
Com os dados ainda desatualizados, projeções indicam que a revisão da cesta de produtos usada no cálculo da inflação no país poderá elevar os números oficiais.
Dados divulgados pelo Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), instituição equivalente ao IBGE, mostram que o índice oficial de preços da Argentina apresentou progresso ao longo do primeiro ano de gestão do presidente Javier Milei.
A inflação saiu do patamar de dois dígitos e, recentemente, atingiu o menor nível mensal em 5 anos. Em agosto, ficou em 1,9%, enquanto a taxa acumulada em 12 meses caiu para 33,6% — após atingir quase 300% em maio de 2024.

O consenso entre especialistas sobre a necessidade de atualizar os dados — somado ao acordo bilionário da Argentina com o FMI (Fundo Monetário Internacional) para a recuperação econômica — levou o Indec a avançar na entrega do novo índice nacional de preços, agora com sua base de referência atualizada.
Segundo o jornal argentino Ámbito Financiero, o trabalho técnico de reformulação do indicador já foi concluído, e “aguarda a aprovação institucional”. A previsão é que a mudança, há muito esperada por economistas e estatísticos, seja anunciada até o fim do ano.
Em relatório, o FMI afirmou que o Indec deverá publicar o IPC com base na Pesquisa de Despesas Familiares de 2017-2018 “para refletir melhor as mudanças estruturais nos padrões de custos e aprimorar a qualidade dos dados”.
Notas de pesos, na Argentina.
Reuters
Como funciona e o que deve mudar no IPC?
O índice atual inclui 609 itens, entre bens e serviços, e está organizado em 12 grandes grupos, explica Analía Calero, da UCA.
Entre eles, estão:
Alimentos e bebidas não alcoólicas;
Bebidas alcoólicas e tabaco;
Vestimentas e calçados;
Saúde;
Transporte;
Educação;
Habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis.
Com a mudança, o total de preços monitorados para compor o índice passará de 320 mil para 500 mil, e o número de informantes — ou seja, de estabelecimentos que fornecem os dados — aumentará de 16,7 mil para 24 mil. Esse processo também deverá ser digitalizado.
“É uma operação estatística ambiciosa, com padrões profissionais elevados e ampla cobertura, mas a ‘foto’ precisa de uma atualização urgente”, afirma Analía, referindo-se à defasagem da atual cesta de bens e serviços e ao peso de seus componentes.
“Um exemplo claro de produtos desatualizados são certos aparelhos eletrônicos, como reprodutores de MP3 e câmeras digitais. Alguns anos atrás, ambos eram populares, mas hoje foram substituídos”, acrescenta.
A professora da UCA ressalta que muitos serviços se tornaram obsoletos. A previsão é que a nova medição do Indec passe a incluir tanto os serviços de streaming quanto o uso de smartphones e outros bens e serviços de consumo modernos.
“Embora 85% dos bens e serviços se mantenham, há inclusão de novos produtos, redução de outros e ajuste nos parâmetros de cálculo. Comparando as pesquisas de 2004/05 e 2017/18, que passará a ser utilizada, observa-se queda do peso dos bens e aumento dos serviços”, explica.
“Por exemplo, [com o tempo] o peso de Alimentos e bebidas não alcoólicas caiu mais de 3 pontos percentuais, enquanto categorias como Habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis, Transporte e Comunicações aumentaram significativamente”, acrescenta.
Esse e outros tipos de ajustes — como a inclusão ou exclusão de itens e a revisão dos pesos de cada grupo que forma o IPC — serão incorporados ao novo formato.
O presidente da Argentina, Javier Milei, faz um discurso especial durante a 55ª reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, Suíça, em 23 de janeiro de 2025.
Reuters
Como a mudança pode impactar Milei?
Um dos principais objetivos de Javier Milei é reduzir a inflação para avançar em seu projeto de recuperação econômica, que conta com o apoio de um empréstimo bilionário do FMI.
No início do mandato, os preços dispararam após a retirada dos subsídios de água, gás, energia elétrica, transporte público e outros serviços básicos. Depois, os preços passaram a subir em um ritmo mais moderado.
O presidente tenta usar a desaceleração da inflação como trunfo para ampliar a popularidade de seu governo diante das eleições de meio de mandato — que irão reformular parte do Congresso —, marcadas para outubro. A atualização do IPC será divulgada apenas depois o pleito.
Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira de São Paulo, destaca que alguns economistas estimam que a inflação de 2024 teria sido cerca de 15 pontos percentuais maior se calculada com uma cesta e um peso de componentes mais atualizada.
“Lembremos que a inflação do ano passado foi de aproximadamente 115%. Obviamente, isso tem reflexos na negociação dos acordos sindicais e em diversos outros efeitos. Então, também existe um timing, um momento para fazer isso da forma mais apropriada possível”, diz.
O diretor do Indec, Marco Lavagna, afirmou em abril deste ano que as variações com o novo IPC podem ficar entre 0,1% ou 0,2%. “Não é uma diferença significativa estatisticamente”, ponderou.
Analía Calero, da UCA, lembra que o resultado dos dados também depende da variação de preços de cada grupo e da dinâmica econômica no país.
“No contexto atual, com aumento de tarifas e eliminação de subsídios, uma nova cesta provavelmente elevaria a inflação oficial, embora os preços dos alimentos ainda tenham papel-chave”, explica.
A professora destaca que o IPC é o principal indicador de inflação. Ou seja, é essencial para calcular outras séries em termos reais (como o PIB), ajustar salários e determinar a cesta de pobreza. “Se o IPC for distorcido, todos os indicadores baseados nele também ficam.”
Servideo, da Câmara de Comércio Argentino Brasileira de São Paulo, reforça que existe consenso técnico, acadêmico e econômico sobre a necessidade de atualizar o índice, mas o fator político também deve ser observado.
“Existe sempre a preocupação de que as mudanças sejam interpretadas ou usadas politicamente — seja pela oposição, seja pelo governo”, diz.
E qual é a situação do Brasil?
Órgãos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, recomendam atualização contínua da cesta de inflação, explica o economista André Braz, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Segundo ele, alguns países mais ricos já fazem isso.
“A recomendação é que a Pesquisa de Orçamentos Familiares [POF, no caso do Brasil] seja contínua. Avaliar as mudanças nos padrões de consumo com maior tempestividade nos permite medir melhor os impactos da inflação”, diz.
Braz, que é coordenador de Índices de Preços do FGV Ibre, lembra que a última POF foi realizada no Brasil entre 2017 e 2018. “Então, a nossa cesta também é considerada defasada pelos padrões internacionais.”
A execução de pesquisas como a POF exige um orçamento bastante robusto, o que dificulta a realização com maior frequência. O especialista lembra que a edição 2024/2025 está sendo finalizada, e os resultados poderão ser observados a partir do ano que vem.
Ainda assim, a cesta e os parâmetros brasileiros são muito mais atualizados em comparação com a formulação do índice argentino.
“Com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares, já entraram streaming, combo de TV por assinatura e serviços mais modernos, como táxi por aplicativo. Serviços bancários também ganharam mais peso”, diz Braz.
“Agora, podem entrar, por exemplo, serviços compartilhados: aluguel de bicicletas e patinetes, salas para trabalhar (coworking). Pode haver também a inclusão de moto por aplicativo e o aumento do peso desses serviços”, conclui o especialista.

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