Congresso do Peru derruba a presidente Dina Boluarte
O recém-empossado presidente do Peru, José Jeri, tem uma árdua missão pela frente: permanecer até o fim do mandato à frente do Executivo do país.
O país que viveu uma relativa calma institucional nos primeiros anos do século XXI já vem de anos de instabilidade, contabilizando sete presidentes desde 2018. Desde Ollanta Humala, que deixou o poder em 2016, ninguém conseguiu governar por um mandato completo.
Parte dessa crise se deve a um sistema político unicameral e a uma Constituição que permite ao Legislativo realizar um “impeachment express” — oficialmente, trata-se de uma destituição. Em compensação, o presidente tem a prerrogativa de dissolver o Congresso sob determinadas circunstâncias. (Leia mais abaixo)
A mais recente “vítima” da montanha-russa da política peruana é Dina Boluarte, derrubada pelo Congresso nas primeiras horas de sexta-feira (9).
O impeachment foi aprovado em votação unânime. Segundo o site do Congresso peruano, 122 deputados votaram a favor do afastamento de Boluarte, e ninguém votou contra.
José Jeri toma posse como novo presidente do Peru, após o Congresso votar pela destituição da ex-presidente Dina Boluarte, em Lima
REUTERS/Angela Ponce
O pedido de afastamento aprovado menciona graves acusações de corrupção contra Boluarte, incluindo o caso “Rolexgate”, que investiga uma coleção de relógios de luxo não declarados. O texto foi assinado por 34 congressistas de diferentes partidos.
Boluarte enfrentou forte rejeição popular — sua aprovação varia entre 2% e 4% — e responde a denúncias de enriquecimento ilícito. Em julho, ela dobrou o próprio salário, o que ampliou as críticas ao governo.
O golpe fatal, no entanto, foi um ataque à popular banda de cumbia Agua Marina, durante um show em Lima, na quarta-feira (8), com uma rajada de tiros disparada em direção ao palco. Os primeiros indícios sugerem que os autores são uma gangue de extorsão, modalidade criminosa que se alastrou pelo país nos últimos anos e que causa enorme indignação popular.
Jeri, empossado em seu lugar, assume por sucessão constitucional, já que ocupava a chefia do Congresso. “Devemos declarar guerra ao crime. Os inimigos são as quadrilhas nas ruas”, ele disse, em seu primeiro discurso como presidente.
A ex-presidente do Peru, Dina Boluarte
Aldair Mejia/AFP
Mandatos incompletos
Jeri deve permanecer na Presidência até abril de 2026, preenchendo um mandato-tampão antes da data prevista para as próximas eleições presidenciais.
Nenhum de seus últimos antecessores conseguiu a proeza de se manter no cargo até o fim do tempo previsto. Dina Boluarte, que ocupou a cadeira por quase 3 anos, é a recordista de permanência desde 2016.
Veja quanto tempo duraram os últimos presidentes do Peru:
Pedro Pablo Kuczynski, de 28 de julho de 2016 a 23 de março de 2018 (1 ano e 238 dias)
Martín Vizcarra, de 23 de março de 2018 a 9 de novembro de 2020 (2 anos e 231 dias)
Manuel Merino, de 10 a 15 de novembro de 2020 (5 dias)
Francisco Sagasti, de 17 de novembro de 2020 a 28 de julho de 2021 (253 dias)
Pedro Castillo, de 28 de julho de 2021 a 7 de dezembro de 2022 (1 ano e 132 dias)
Dina Boluarte, de 7 de dezembro de 2022 a 10 de outubro de 2025 (2 anos e 307 dias)
Desde o governo de Kuczynski, a relação entre presidente e Congresso tem sido tensa em Lima. Nem todos eles, porém, foram destituídos formalmente.
Kuczynski renunciou ao cargo após a divulgação de vídeos que mostravam tentativa de compra de votos de deputados para que ele sobrevivesse a uma votação de impeachment. Vizcarra, seu sucessor, caiu de fato por impeachment.
Merino entrou em seu lugar, mas figuras políticas questionaram sua legitimidade no cargo, o que precipitou sua renúncia em apenas 5 dias. Sagasti foi promovido como presidente do Congresso, por sucessão constitucional, levando o mandato-tampão sob intensas crises sociais e políticas até o final.
Pedro Castillo foi eleito em 2021, mas, sem dar conta das tensões, foi removido do cargo sob o artigo 113 da Constituição, parágrafo 2º, que permite que o Congresso destitua o chefe do Executivo por “incapacidade moral”.
O mesmo artigo 113 foi utilizado na última sexta-feira, para o impeachment de Dina Boluarte, que havia assumido como vice da chapa de Castillo.
Presidente peruano, Pedro Castillo, durante pronunciamento à população em 6 de dezembro de 2022
Jhonel RODRIGUEZ / Peruvian Presidency / AFP
O vizinho andino tem um sistema político com pontos importantes diferentes do Brasil – e da maior parte da América Latina. Os processos de impeachment e destituição têm uma tramitação “express” porque não existem duas câmaras no Legislativo para debater e colocar entrave a tais decisões. Entenda melhor abaixo:
por que o Peru tem um sistema unicameral;
o que ele implica;
como isso se relaciona com o processo de impeachment;
o cargo de primeiro-ministro peruano;
Sistema unicameral
Prédio do Congresso peruano em Lima.
Cris Bouroncle / AFP
Diferentemente do Brasil, o Peru não tem o chamado sistema bicameral – em que o Poder Legislativo é exercido por Senado e Câmara dos Deputados. No Peru, o Congresso é composto por apenas uma delas, em que atuam 130 parlamentares.
Mas nem sempre foi assim. Até 1992, o país tinha Câmara de Deputados e Senado. Naquele ano, o então presidente Alberto Fujimori (1938 -2024) deu um “autogolpe”: entre outras medidas, fechou o Congresso, enviou militares às ruas e promulgou uma nova Constituição no ano seguinte.
No texto, que foi aprovado por um referendo, ficou determinado que o país não teria mais um Senado – e a regra vigora até hoje.
O ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori, em foto de arquivo.
Reuters/Mariana Bazo
“Fujimori tinha um discurso e uma prática de crítica forte às instituições – que eram lentas, inoperantes, ineficientes. Para ele, os políticos peruanos eram uma desgraça para o país – então, para que ter duas Câmaras?” aponta o professor Jorge Aragón Trelles, um dos pesquisadores principais do Instituto de Estudos Peruanos, em Lima.
Um dos motivos para o texto nunca ter sido alterado desde 1993 continua sendo, segundo explica Aragón, a opinião pública.
“Há uma desconfiança e um aborrecimento da opinião pública com o Congresso e os congressistas – nenhum presidente quis levar a cabo a reforma porque é muito impopular. As pessoas não querem mais congressistas”, afirma Aragón.
Mesmo assim, o governo de Vizcarra tentou recriar o sistema bicameral. Em agosto do ano passado, o presidente enviou um projeto ao Congresso que previa a recriação do Senado. Quando o texto chegou ao parlamento, foi modificado pelos congressistas. As alterações feitas “desvirtuavam o espírito da reforma, na opinião de Vizcarra, e por isso não passou”, explica Aragón.
Outras mudanças, entretanto, foram emplacadas: em dezembro de 2018, o país aprovou, por referendo, uma reforma que acabava com a reeleição para os parlamentares.
Como o Congresso funciona na prática
Ex-presidente do Peru, Martin Vizcarra, anunciou a dissolução do Congresso em 2019 em uma mensagem televisionada
Renato Pajuelo / Andina / AFP
O fato de o Congresso do Peru só ter uma câmara legislativa significa, na prática, que um projeto só precisa ser aprovado – ou não – por uma única casa antes de ir à sanção presidencial.
O professor Jorge Aragón acredita que seria melhor para o país ter um sistema bicameral.
“Como não temos duas câmaras, há certas coisas que não funcionam bem. Não temos uma segunda instância que possa revisar a qualidade das leis”, avalia.
“Se tivéssemos duas Câmaras, poderíamos ter uma representação por partidos e uma representação territorial. Poderíamos organizar melhor o trabalho do Congresso – a Câmara Baixa [dos Deputados] poderia fazer algumas coisas e o Senado poderia fazer outras. Tudo isso simplesmente se perde quando não há um sistema bicameral”, explica.
Por outro lado, o Peru não é o único país com esse sistema, lembra o professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo Oliver Stuenkel. Venezuela, Equador, Portugal, Dinamarca e Nova Zelândia são outros exemplos de países que só têm uma Câmara legislativa.
“Basicamente, todos os sistemas políticos são imperfeitos. Não dá pra dizer que um sistema é melhor que o outro – depende de muitos fatores, é ligado ao processo político do país. Não há uma decisão clara sobre qual sistema é superior ao outro”, avalia Stuenkel. “Com uma Câmara só, costuma-se tomar decisões mais rapidamente”.
Por outro lado, pondera, “ter as duas Câmaras aumenta a complexidade dos sistemas, mas, ao mesmo serve como mecanismo de freio — limita a possibilidade de radicalização rápida porque, muitas vezes, há uma distribuição de poder que difere. É como no caso americano, em que o Senado é de maioria republicana e o Congresso, de maioria democrata”, avalia Stuenkel.
Ele lembra, também, que o Senado, ao ser composto por uma representação territorial, acaba dando maior peso a regiões que têm menor população.
Congresso, destituição e impeachment
Para remover um presidente, a Constituição do Peru exige 87 votos, de um total de 130 deputados.
Pela lei peruana, o presidente pode “dissolver o Congresso se este tiver censurado ou negado sua confiança a dois gabinetes”.
Dissolução do Congresso
Antes de ser destituído do cargo e preso, o ex-presidente Pedro Castillo havia tentado dissolver o Congresso. Castillo respondia a um terceiro processo de impeachment na Casa.
A Constituição do Peru prevê essa possibilidade no artigo 134: “O Presidente da República tem o poder de dissolver o Congresso se este tiver censurado ou negado sua confiança a dois gabinetes”, ou seja, Castillo se valeu dos outros dois processos de impeachment anteriores para tomar essa decisão.
O mesmo artigo diz que o presidente é obrigado a convocar novas eleições em até 4 meses, sem fazer qualquer tipo de alteração no processo eleitoral.
Em 2019, Martín Vizcarra, que era presidente na época, também dissolveu o Congresso e convocou novas eleições. Em 1992 o mesmo ocorreu durante a gestão de Alberto Fujimori, que posteriormente incluiu esse artigo na Constituição.
Presidente e ‘primeiro-ministro’
Além do presidente, o Peru tem em seu governo uma figura rara na América Latina: uma espécie de premiê. Seu cargo oficialmente se chama “presidente do Conselho de Ministros” e, na prática, ele atua como chefe dos ministros, uma espécie de chefe de gabinete, segundo o professor Jorge Aragón.
Algumas pessoas dizem que o sistema político peruano é “presidencial parlamentarizado”, mas não é para tanto. “O ‘primeiro-ministro’ é como um aliado que o presidente tem. O sistema peruano é fortemente presidencial e tem a figura do premiê como coordenador dos ministros. Mas não mais que isso”, explica.
Peru tem sistema político singular que permite ‘impeachment express’; país teve 7 presidentes em 7 anos
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