
Por dentro do desmanche: como carros viram peças e reduzem custos
As montadoras têm diversificado o seu tipo de negócio nos últimos anos. Algumas já não se apresentam apenas como “fabricantes”, mas como prestadoras de serviços de mobilidade. E isso tem refletido na forma como ofertam veículos, serviços (como de locação, por exemplo) e até peças de manutenção.
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A Stellantis, dona das marcas Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, inaugurou, em meados de agosto, o primeiro centro de desmontagem veicular da América Latina, com investimento de R$ 13 milhões. A unidade fica localizada em Osasco (SP) e marca a entrada da montadora no que o mercado chama de “reciclagem estruturada de veículos sinistrados e em fim de vida útil”.
🚗 Na prática, a empresa reaproveita carros — inclusive de outras marcas — que não podem mais rodar, seja porque foram destruídos em acidentes, por exemplo, ou porque já estão fora de uso. A ideia é dar um destino certo a esses veículos, de forma a desmontar, reciclar e reaproveitar suas partes.
“Numa iniciativa de economia circular, fazia muito sentido trazer peças e produtos de volta para o mercado. Geramos mais valor para a cadeia que ainda é menos explorada”, afirma Alexandre Aquino, vice-presidente de economia circular da Stellantis para a América do Sul.
Com o projeto, a empresa se torna a primeira montadora na América do Sul a investir em um espaço dedicado ao desmonte legal e rastreável de automóveis.
Apesar de pioneira, no entanto, a Stellantis não é a única que vê no desmanche uma nova oportunidade de aumentar o faturamento. Em entrevista exclusiva ao g1, a Toyota afirmou que pretende entrar nesse segmento nos próximos anos.
Centro de desmontagem veicular da Stellantis recebe carros de todas as marcas
Divulgação | Stellantis
Veja nesta reportagem o passo a passo do desmonte de carros e entenda o que tem impulsionado o crescimento deste mercado no Brasil.
Qual é o tamanho do mercado de desmanche?
Segundo dados divulgados pela Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) em parceria com a Dana Brasil, o mercado de reposição automotiva movimentou R$ 260 bilhões com a venda de peças em 2024.
A estimativa do setor é que aproximadamente dois milhões de veículos cheguem ao fim da vida útil por ano. Ainda assim, dados da Associação Brasileira da Reciclagem Automotiva (Abcar) e do Sindicato do Comércio Atacadista de Sucata Ferrosa e Não Ferrosa do Estado de São Paulo (Sindinesfa), apontam que apenas 1,5% desse total recebe destinação adequada.
“É importante destacar que essas empresas não seguem um padrão único de operação. A maioria é formada por negócios familiares, com funcionários que são da própria família, e sem estrutura industrial padronizada”, explica Julio Cesar Luchesi de Freitas, presidente da Abcar.
Esse cenário, segundo as entidades Abcar e Sindinesfa, revela um potencial de R$ 14 bilhões anuais em peças recuperáveis que ainda não é aproveitado pelo setor. Globalmente, o mercado de remanufatura movimentou US$ 70 bilhões (cerca de R$ 377 bilhões) em 2024, crescendo em média 9,3% ao ano.
O avanço tecnológico e a maior rastreabilidade das peças têm impulsionado a formalização do setor, antes dominado por operações informais. Até o momento, no entanto, há apenas pouco mais de 5 mil desmontes homologados no Brasil, com um mercado estimado em R$ 2 bilhões, segundo a Abcar e o Sincopeças-SP.
Centro de desmanche da Fiat tem capacidade para desmontar até 8 mil carros por ano
Rafael Peixoto | g1
Combate ao comércio ilegal de peças
A Lei do Desmanche (n.º 12.977), que regulamenta a atividade de desmontagem de veículos automotores no Brasil, foi sancionada em 20 de maio de 2014. O objetivo principal da legislação é organizar o setor e combater o comércio ilegal de peças, contribuindo para a redução de roubos e furtos de veículos.
Entre as exigências previstas, a lei determina que os desmanches legais sejam credenciados, rastreáveis e sigam normas específicas, como a emissão de notas fiscais para as peças comercializadas e o registro das operações nos Detrans de cada estado.
A despeito da lei, poucos estados cumprem com as regulamentações do desmanche de veículos terrestres no Brasil, segundo o presidente da Abcar. Assim, nem sempre é possível estabelecer quanto é o preço médio da peça remanufaturada no país.
“É difícil ter um número exato para cada ponto. A legislação foi implementada em 2014, com a resolução saindo em 2016. Mas, na prática, entre todos os estados do Brasil, apenas São Paulo tem o sistema funcionando plenamente — desde o credenciamento até a rastreabilidade das peças”, disse Julio Cesar Luchesi de Freitas, presidente da Abcar.
Segundo Freitas, há iniciativas em andamento no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, mas ainda estão em fase de implementação. Outros estados estão “se movimentando”, mas a lei não foi efetivamente colocada em prática.
“Há empresas grandes, com até 100 funcionários, mas são minoria. Muitas têm apenas quatro colaboradores, e algumas nem possuem funcionários registrados. Ou seja, varia muito. Existe uma estimativa geral, mas não há dados precisos para afirmar com certeza”, explicou Freitas.
Em comparação ao mercado internacional, o Brasil tem uma frota menor de veículos em relação a países da Europa e dos Estados Unidos, por exemplo — o que naturalmente resulta em um número inferior de peças disponíveis para reposição.
O presidente da Abcar destaca, no entanto, que o desempenho brasileiro é proporcionalmente superior quando se trata de peças recuperadas.
“Estima-se que o país recupere cerca de 30% a mais de peças em relação ao número de veículos sucateados. Isso acontece porque, ao contrário dos mercados europeu e norte-americano — que costumam reaproveitar apenas os componentes mais relevantes e descartam o restante devido à grande oferta de veículos e peças novas —, o Brasil aproveita uma maior variedade de peças, impulsionado pela menor disponibilidade de reposição nova no mercado”, relatou Freitas.
De onde vem o valor baixo das peças?
Segundo o presidente da Abcar, é comum que os desmanches comercializem peças com descontos significativos.
“Em média, os preços giram em torno de 50% abaixo do valor de uma peça nova”, afirma Freitas, reiterando que o que explica o preço mais baixo é justamente a eliminação do custo de produção.
Conforme Freitas, o que explica o preço da peça mais barata é eliminar o custo de produção. “O custo operacional do processo de desmontagem acaba sendo mais barato do que o custo industrial na produção de uma nova peça”, alega o executivo.
O segmento de reposição automotiva envolve tanto peças originais quanto paralelas novas, além de incluir também as remanufaturadas. De acordo com a Stellantis, uma peça recondicionada pode evitar o desperdício de até 80% da matéria-prima necessária para a fabricação de uma nova.
Para tornar essa economia mais visível, imagine uma engrenagem que tenha apenas algumas avarias. Se essa peça for recuperada e voltar funcionar, ela pode retornar para um carro que precisasse dessa peça, sem a necessidade de produzir uma totalmente nova. (Veja a imagem abaixo)
Recuperar uma peça gera economia de 80% da matéria-prima que seria usada para produzir uma nova
Gui Sousa | g1
A Stellantis, que tem apostado no setor para aumentar o faturamento, consegue vender peças por menos da metade do preço.
Um exemplo, segundo Aquino, é o farol de um Jeep Commander. A peça, que chega a custar quase R$ 3.500 na internet, é revendido por R$ 1.500 na loja física e online da Circular AutoPeças após recuperado.
O passo a passo do desmanche
O procedimento é dividido em cinco etapas principais. Veja abaixo.
Teste de motor e eletrônica:
Nesta etapa inicial, os componentes são verificados para identificar quais ainda funcionam. O motor e a transmissão são colocados à prova com o carro ligado, para avaliar se ainda há condições de rodagem. Também são testados os sistemas eletrônicos, como faróis, lanternas, luzes internas e do painel.
Descontaminação:
Com o veículo no elevador, inicia-se a retirada de óleos, combustíveis e fluidos. O mecânico responsável remove o bujão do cárter — onde o óleo lubrificante do motor fica armazenado quando o carro está desligado. Em seguida, é retirado o líquido de arrefecimento, conhecido popularmente como “água do radiador”.
Desmontagem:
A desmontagem física do veículo ocorre em três fases:
1️⃣ Primeiro, todos os parafusos e pontos de fixação do motor, câmbio, rodas e eixos dianteiro e traseiro são soltos.
2️⃣ Depois, essas peças, que compõem o conjunto motriz do veículo, são retiradas.
3️⃣ Por fim, são removidos a lataria (tampas, capô e portas), os acabamentos externos (lanternas, faróis) e os internos (painel, volante, bancos e tapeçaria).
Lavagem das peças:
Todas as peças que ainda podem ser recuperadas ou vendidas são encaminhadas para limpeza.
Fotografia:
Após a lavagem, as peças são fotografadas para cadastro, recebem etiquetas do Detran e são publicadas para venda na internet.
⛔Peças de segurança, como airbags, freios e cintos de segurança não são reaproveitadas e seguem diretamente para reciclagem.
O desmanche é basicamente feito em três etapas: soltar parafusos, retirar o conjunto motriz e os acabamentos
Gui Sousa | g1
Em paralelo, uma linha separada cuida dos sistemas eletrônicos — fios, módulos e centrais de comando (ECUs) —, encaminhados para reciclagem especializada.
“Desmontar um carro é mais fácil do que montar. Na desmontagem, é preciso se preocupar apenas com as peças que serão reutilizadas, não com o carro todo”, explica Martin Siroit, gerente de manufatura da Circular AutoPeças.
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Classificação, rastreabilidade e venda
Etiquetas do Detran são colocadas em todas as peças para evitar fraude
Rafael Peixoto | g1
Após desmontadas, as peças passam por uma limpeza com produtos biodegradáveis e são classificadas de 0 a 9 conforme seu estado de conservação (veja abaixo).
Peças com notas de 0 a 4: enviadas para remanufatura;
Peças com notas de 5 a 9: vendidas diretamente, sem recondicionamento.
Cada componente recebe uma etiqueta de rastreamento emitida pelo Detran, com informações sobre origem, nota e procedência.
A rastreabilidade das peças começa com a emissão de uma cartela, por parte do Detran de cada estado. Essa cartela conta com informações das 49 peças que podem ser vendidas no mercado.
“A etiqueta mostra a classificação e garante transparência total ao cliente, com segurança e procedência legal”, explica Aquino.
Essa cartela é atrelada a um veículo específico por meio do chassi e da placa. Cada etiqueta é destinada para uma peça (farol direito, farol esquerdo, volante e assim por diante). É através dessa etiqueta que o Detran pode fazer eventuais auditorias nas peças.
Peças são lavadas e catalogadas após o desmanche
Divulgação | Stellantis


